O mundo do outro é um universo desconhecido. O meu já o é, imagine o do outro. Saber disso é fundamental para a liberdade de ser quem se é, de silenciar o alarme faminto por uma afirmação delirante. Isso eu já sei. A novidade são os universos hostis, paralelos e incomunicáveis que essa eleição deflagrou terem vindo para ficar.
Fiquei pensando (e me sentindo ridícula) no quanto a investigação da linguagem poética, do estilo da escrita, da composição das palavras faz qualquer sentido diante de uma sociedade que tem escrito com dez pontos de exclamação. A busca por metáforas morrendo de sede no país das dez exclamações ou interrogações.
Como pode alguém votar nele????????
Como pode depois de tudo o que ele fez??????
Como pode alguém brigar por política?????
Essas são as perguntas que povoam redes sociais após o primeiro turno das eleições 2022, no Brasil. Elas são usadas tanto por eleitores de um dos candidatos quanto por outro e a última mais usada por quem, por algum motivo, escolheu não se envolver (ah, como é impossível não se envolver…)
Votei Lula e vesti estrela. E me pergunto ‘como pode alguém votar nele?’, referindo-me ao candidato bolsonaro. Pois tenho, com nitidez, a memória do atraso na compra da vacina, do descaso com a medicina e com a ciência (ele não se vacinou publicamente), dos imóveis comprados com dinheiro vivo, da família toda vivendo de cargo público, da homenagem ao torturador, da ‘boiada’ na amazônia, das inúmeras falas racistas, homofóbicas, machistas, dos sigilos de 100 anos, das fake news, etc, etc, etc.
Vesti estrela, vestirei novamente e vestiria (de certo modo vesti) tucano se fosse o caso. Pois, para mim, é inconcebível a permanência desse sujeito no poder.
Quando me pergunto ‘como pode alguém votar nele???????”, porém, quero retirar o excesso de exclamações e deixar só uma.
Como pode?
Olhar com paciência para a pergunta. Em qual universo vivem agora muitos amigos, parentes (que dor…), pessoas que cresceram comigo? Por que essas informações não são, para eles, inadimissíveis? Por que a opção de votar no Lula (acreditem entendo a dificuldade desse voto) é pior do que a manutenção desse cenário de horror do governo bolsonaro? Qual é o medo profundo? Qual a linguagem profunda?
Uma vez, indo pra uma praia afastada no litoral paulista, num lugar deserto, vi 3 estabelecimentos: uma vendinha, um restaurante e uma igreja. Todos pequenos, coisa de portinha pra rua e muita simplicidade. Fiquei pensando nos alimentos, nas funções de alimentar que esses três lugares têm. Entrar na igreja é alimentar o subjetivo, a fantasia, a fé. Deus morar perto faz um bem danado para a alma. Pensei, na ocasião, que deveria ter ali uma portinha também para a arte, um teatro, um pequeno museu, uma casa de cultura ou qualquer lugar onde se pudesse ouvir uma música.
Temos uma falência evidente, a meu ver: a do alimento simbólico. O alimento se dá em sacrifício. É preciso estar. Não basta enviar mensagem. As igrejas sabem disso e abrem portinhas em muitos lugares. Eu, como artista por escolha e/ou vocação, tenho que abrir portinhas também e estar e devolver. É preciso estabelecer com rigor não só um debate emergencial, urgente para esse segundo turno que se aproxima, mas uma discussão perene, um ouvido suave e perene. Uma esperança ativa e para daqui um século.
A estrela que vesti ontem era de um filtro de instagram. lulaverso, se chama. Achei bastante esclarecedor. Nos meus stories, lulaverso. No meu feed, lulaverso. Fiquei esperançosa um pouco. Mas com a pulga atrás da orelha: como estará o bolsonaroverso? como estará esse universo e quais são as notícias chegando por lá? Não comparo os dois candidatos, que fique bem dito. Não há comparação possível. Comparo as dinâmicas virtuais das redes, dos algoritmos, da construção dos universos, dos mundos com leis e idiomas próprios. É preciso também derrubar qualquer sombra de dúvida: as redes sociais são importantes pelo uso que fazemos delas, mas enquanto empresa, não se importam em nada com qualquer valor, virtude ou ética. A criação dos universos é a manutenção da pequena dose viciante de prazer instantâneo. Você vê o que gosta, curte e é curtido. E cria rede, cria identificação.
Por que falo das portinhas e dos universos virtuais? Porque tenho a impressão de que o disparo em massa bolsonarista, fake news e uso afiado das redes só fez tanto estrago porque encontrou uma legião de famintos. Famintos por pertencimento, por símbolos, por figura paterna, por certa escuta. Os recados das redes bolsonaristas não deixavam de usar também as portinhas. Eles sabem que a validação do pertencimento se dá corpo a corpo. Usaram as redes para invadir com ideais distorcidos a noção de família e de Deus, as portinhas mais abertas da sociedade brasileira, as comunidades mais atuantes. Espalharam, com maestria estratégica, a falsa notícia do fechamento das portinhas (literalmente, em uma das mais recentes fake news). Criaram, virtualmente, a certeza de que o que estava sob ameaça, não era a abstração ideológica, mas os territórios de amor e, paradoxal e cruelmente, convocaram a guerra. O inimigo, esse sim abstrato, a esquerda, o comunismo. O monstro está feito. E é justamente por não existir que é monstro. E é justamente por ameaçar coisas que existem, que vale a pena pegar armas e atirar numa fumaça.
Por fim, escrevo esse texto porque preciso organizar meus monstros. Tirando da abstração. Quem são eles? Para seguir, preciso acreditar que são e que somos seres frágeis e apavorados. Prefiro acreditar que foi para proteger suas portinhas que alguns de nós saímos por aí em caminhos inacreditáveis, portando, com orgulho, um voto no horror.
Queria dizer, para quem ainda me lê, que as portinhas estão sendo fechadas,uma a uma. E que votar contra quem alimentou monstros em nós, é votar em alguma possibilidade de respiro e encontro.
Baixem as armas.
Guardem o medo: o monstro não existe e, ao tentar atirar nele, matará seus filhos.
(Aos artistas, pensadores, acadêmicos que me lêem, um chamado: vamos parar de falar para nossos territórios egóicos e abrir portinhas?)
…
Meu livro, Sede de me beber inteira, está à venda aqui nesse link:
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"Em qual universo vivem agora muitos amigos, parentes (que dor…), pessoas que cresceram comigo? Por que essas informações não são, para eles, inadimissíveis? Por que a opção de votar no Lula (acreditem entendo a dificuldade desse voto) é pior do que a manutenção desse cenário de horror do governo bolsonaro? Qual é o medo profundo? Qual a linguagem profunda?"
Penso muito sobre isso também. É inacreditável o que o ódio por um partido pode causar.
Obrigada pelo texto! Ótimo, como sempre!
Só consegui ler hoje e foi incrível ter esperado. Minhas portas estavam trancadas. Senti um arzinho fresco... obrigada <3