Você pode se chamar de morador do mundo, cidadão do universo, habitante da galáxia, mas na hora de dormir, precisará de uma cama pertencente a um quarto, pertencente a uma casa ou hotel. Ou um colchão dentro de uma barraca localizada num ponto específico desse mundão todo. O que quero dizer é que, mesmo sendo morador da galáxia, não será possível descansar se esparramando num corpo infinito apoiando o pescoço na via láctea e enfiando os pés no buraco negro. Ok. Fui longe. Mas justifico-me: estou precisando de contornos. Sem contornos, não será possível nenhuma felicidade.
Experimento um drink delicioso num restaurante de São Paulo. Sem contorno, esparramo-me para a fome no Brasil, para a desigualdade. Imediatamente, esvai-se a felicidade. O que sobra de mim? Alguém que não experimentou uma dose de paz e alguém que não solucionou nem uma mísera partícula da fome no brasil. Por que se para a felicidade é preciso delimitar tempo e espaço, para pensar seriamente como colaborar com o combate a desigualdade no brasil, também. Sem tempo espaço não é possível nem ser feliz, nem triste. Sem tempo, espaço e corpo-presença, não é possível nem desenrolar o sentimento que ocupa, como um novelo, o estômago e como uma chuva de meteoros, a cabeça.
Entro aqui num tema muito delicado e num terreno perigoso. Não convido ninguém a delimitar tempo-espaço, ser feliz dentro dele e alienar-se. A intenção desse texto é pensar se a ausência de um corpo que experimenta aqui e agora não estaria nos levando a uma pseudo revolução apenas conceitual e que, inevitavelmente, nos tornará mais tristes. O contato com o mundo, a pele disposta a ocupar o mundo e recebê-lo, estará sujeita a carícias e cortes, porém, a mente, essa massa infinita e sem fronteiras, está sujeita a carícias e cortes ao mesmo tempo, sem saber nem a delícia de um, nem a dor do outro.
A internet, essa distopia atual, fez o que nenhum (ou poucos) filmes de ficção previam: nos ausentou de nossos corpos e do tempo presente. Se víamos carros voadores, viagens para a lua, alienígenas convivendo conosco nas produções dos anos 80, 90, ainda assim havia movimento. O carro voador com alguém dentro se deslocando. Talvez Matrix tenha sido tão interessante justamente porque nos coloca diante da ausência do corpo. A mente, guiada por estímulos certeiros, simula o corpo, mas não o é. Quando Neo escolhe a pílula vermelha, ele escolhe o corpo. E não o faz pensando que o real será apenas sofrimento, certamente. Ele o faz, pois não lhe parece razoável navegar infinitamente por criações mentais estimuladas por terceiros. Pois bem, a arte imita a vida (ou vice versa) mas a vida o faz com movimentos mais sutis e muito mais embaralhados. O movimento da mente criado por terceiros e que nos aprisiona talvez seja o excesso de informação sem contorno. A angústia gerada pela mente em expansão horizontal infinita. Uma mente que precisa cada vez menos do corpo e que o dá cada vez menos chance de existir. Uma mente que não cabe mais dentro da pele e que deita o corpo no sofá para que ele fique à disposição de seus devaneios paranóicos. Mãos e dedos gritam nas telas, mas a voz repousa pastosa na cabeça.
Volto ao começo do texto. Volto a mim e à descoberta que fiz essa semana. Sem contorno jamais poderei ser feliz. Nem triste. Sem contorno, me resta a angústia. Será preciso contornar meu corpo de novo, minha casa, meu espaço de ação e movimento, tocar as coisas e experimentar um movimento vertical. É preciso que minha mente caiba na cabeça e que a cabeça se renda à língua às vezes. E que sorva o vinho e que beije a boca. Se eu confundir isso com alienação e seguir num caminho penitente e inútil, voltarei à matrix, aquela nos deita no sofá e nos faz crer que estamos mudando o mundo.
InDica
Para ler:
Letrux, Tudo que já nadei - ressaca, quebra-mar, marolinhas, publicado pela editora Planeta.
Para seguir:
Caixa de Saída, textos autorais de Cristina Rioto.
Para ouvir:
Das minhas preciosidades antigas que agora estão muito pertinho - No fino da bossa, volume 3, ao vivo. Elis e Jair em gravações incríveis! Elis nos seus 19 anos recebendo, por exemplo, Elza Soares no programa Fino da Bossa. Um tesouro!
Divulgando meu trabalho
Vejam a transmissão do Prêmio Inspiradoras 2022! Dia 20-09, terça-feira, às 20h. Farei uma participação beeeem especial. Transmitido pelos canais no You Tube da Universa Uol e do Instituto Avon
Que ótima reflexão!