Peço que me leiam com generosidade. Coração aberto e disponibilidade para o perdão, pois estou prestes a cometer várias afirmações levianas e talvez aparentemente acusatórias. Aparentemente, pois não tenho a intenção de acusar uma ou outra prática, mas apenas mergulhar e compartilhar o mergulho. No fundo, do mar e da gente, compõem a paisagem as conchas e as garrafas PET. O que nos é natural e o que nos é colocado à força e passa a ser uma espécie de natureza. A garrafa pet, verde como alga, se esconde no fundo e é preciso olhar bem de perto para reconhecer sua toxicidade. Olhar bem de perto no fundo do mar, requer fôlego ou equipamento. Sinto que estou munida só agora de um pouco desses dois. Pois vamos.
Recentemente lancei meu livro “Sede de me beber inteira”, na Livraria da Vila, em Pinheiros, São Paulo. Coloco essa localização com tanta precisão, pois preciso me lembrar dela e me lembrar que isso não é pouca coisa. Estava me sentindo linda e recebi muitos elogios em relação à beleza. Ontem recebi as fotos do evento. As fotos incríveis, capturavam sensações, emoções, abraços e felicidade. Eu, quando olhei, vi pálpebra caída, bigode chinês, pés de galinha e queixo duplo. Eu juro a vocês que foi isso que vi. E que procurei, uma a uma, garimpando, as que não tivessem essas características para eleger como minhas preferidas mesmo que nessa seleção não estivessem as que estou abraçando pessoas amadas. Foi assim que vi o registro de um dos dias mais importantes da minha vida. Pensei em aplicar botox e corrigir as pálpebras.
Cada um faz o que quiser, pensei. Por que tenho que ser eu a que suporta o avançar da idade sem procedimentos, pensei. Eu vou parar de querer ser mártir, pensei. A cara é minha, pensei.
A cara é minha?
E pensei no quanto essa cara nunca foi muito minha nem esse corpo. E o quanto eles sempre estiveram a serviço de algo que não sou eu, ou melhor, sou eu em estado de natureza camuflando o plástico. Essa cara sempre esteve sequestrada por uma imagem da cara. Que são coisas totalmente diferentes. O corpo sequestrado pelo projeto do corpo. O projeto do corpo a serviço da satisfação visual de outro alguém ou outros alguéns (que nesse caso existe num plural bastante ostensivo, aliás). Quando me deparo, portanto, com a minha cara em envelhecimento nítido e aparente e intuo que não devo fazer procedimentos ao mesmo tempo em que os quero muito, sei que estou diante de um conflito muito maior do que o “aceitar” ou não essa nova condição. A questão não é aceitar a nova cara, a questão é aceitar a cara que nunca foi minha, voltar a mim, devolvida pelo consumidor que irá trocar por um modelo mais novo e adequado. Envelhecer é recolher da vitrine o produto sem saber ao certo qual valor ele terá agora que não tem mais valor de venda. Ou, mergulhando ainda mais, envelhecer é recolher do cativeiro a cara sequestrada e não saber em qual lugar de si abrigar a resgatada.
Talvez queira esticar a cara para esticar o tempo de ter que me fazer a pergunta: quem sou eu sem a juventude? Ou quem sou eu sem a vitrine? Quem sou eu sem a beleza? Quem sou eu se não for objeto de desejo? O que sobra de mim? O que eu fiz nesses anos todos que não foram para ser vista por alguém?
Essas perguntas seguram minhas mãos. Sou curiosa e quero conhecer a outra não linda também. Por favor, entendam que não acho que mulheres que fazem procedimentos não experimentem o amadurecimento e a evolução que o envelhecimento traz. O que digo é que há uma camada de desistência em deixar-se envelhecer que é vista como abandono de si e eu quero instaurar a hipótese de ser justamente um movimento de resgate de si. A possibilidade de retirar-se da vitrine e, inspire profundamente, olhar-se em busca de novos adjetivos.
(Ainda não sei se não farei botox. Certamente farei o procedimento nas pálpebras. É questão de saúde, me disseram. Não sou mártir e vou até onde puder. Sou humana, porém, quero varrer o máximo possível de garrafas PET do meu oceano)
InDica
Para ver:
Antes tarde do que nunca, estou assistindo Girls, na HBO. Lena Dunham é genial e a série é divertida e bastante transgressora.
Para ler:
A gente mira no amor e acerta na solidão é um presente que Ana Suy nos dá! Ela alia conceitos de psicanálise a uma linguagem acessível e tremendamente viciante. Publicado pela Planeta.
Divulgando meu trabalho
Saiu um vídeo delicioso onde conto para Mariana Martins um pouco sobre mim e sobre o meu livro. O Papo de Autor tá no ar! Veja o vídeo aqui
Passando só para deixar registrado que amei a news. Texto incrivel e ótimas dicas 🥰
Texto esclarecedor sobre as dúvidas que temos conforme o tempo passa. ❤️