O dia está lindo. O despertador tocou às 6 da manhã. Com gratidão pela vida, espreguicei e botei os dois pés na pantufa. No espelho, uma cara amassada escova os dentes. Sorrio diante da imagem. Sou bonita e estou descabelada. O sol começa a esquentar o vidrinho do banheiro aos poucos. A luz âmbar invade o azulejo e minha pele. Fecho os olhos, respiro fundo e tiro a primeira foto do dia. As mãos em oração são a figurinha da vez. Faço um chá com ervas orgânicas. Parei de tomar café há alguns meses. A cozinha tem acessórios vermelhos. Eu ponho comida para a cachorra. Sento-me à mesa com chá, uma fatia de mamão e outra de pão. Minha toalha tem tons de verde, rosé e cinza. Formam desenhos harmoniosos, mas abstratos. O prato de cerâmica. Rústica. Mastigo e fecho os olhos mais uma vez no dia. Estou comendo sentindo cada gostinho do alimento, a textura e o cheiro vêm brincar com meus sentidos. Mais uma foto: a mesa, o pão, o mamão partido pela faca que ainda repousa no prato, minha mão segurando o garfo delicadamente. Termino minha refeição e lavo a louça. Lavo a louça e arrumo a cama. Arrumo a cama e lavo o rosto com cuidado. Vitamina C. Filtro solar. E uma massagem deliciosa pela pele. Minha pele está ótima. Consigo sorrir ao olhar para cada detalhe. Uma calça de moletom de algodão grafite. Estonado. Uma blusa de moletom grafite estonado com capuz. Monocromática. Tênis adidas. Housewear. Confort. Minha cachorra já espera com a coleira na boca. Uma graça! Dá um latidinho suave me chamando para passear. Vamos as duas pela rua. Agora são 7:15 e o sol já está deixando o céu bem azul. Ando pela rua apreciando os ipês floridos. Outra foto. O ipê com raios solares invadindo as frestas. Bom dia. Eu escrevo. Algumas pessoas respondem. Ignoro. Não é hora de rede social. Agora é hora de viver o presente. O agora! Volto ao meu apartamento. A cachorrinha come toda a comida e deita na sua caminha. Ela está linda e cheia de charme com o lacinho do pet shop na cabeça. Minha família já está acordada e tomando o café que eu deixei na mesa com carinho. Dou um beijo em cada um e me sento para trabalhar das 8:00 às 10:00. Faço pausas a cada duas horas para melhorar a produtividade. Diante do meu computador, vejo as vendas do meu site de velas perfumadas explodir! Estou na capa da Home Well Done Woman Business Motherfucker. Respiro fundo e engulo mais um pouco de chá. Minha equipe de vendas é maravilhosa. Somos uma família. Tiro uma foto do meu time e coloco na rede social do trabalho que deu certo. Começam a aparecer as curtidas. Posso seguir em frente. Estou preparando uma palestra sobre networking. Tudo está bem. Eu estou bem. Eu estou ótima.
Uma rachadura no teto da parede do meu quarto. Espero que não seja um sinal de que o prédio vai cair e eu, ignorante, trato como banalidade. Preciso consertar a descarga do lavabo. Rompo meus devaneios com a realidade escatológica.
São 11 horas da manhã e eu estou escrevendo esse texto. Visto pijama de calor, mas faz frio. Nada disso aconteceu. A não ser na minha mente. E na sua, quando leu. E talvez tenha sido o suficienTe para que tenha se sentido inferior ou tenha desejado se ajustar ao que coloquei aqui nessa vitrine. Nada disso existe. O que existe de verdade é a impossibilidade de encapsular a vida e a felicidade.
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Hoje não tem InDica. Tô correndo aqui. Me perdoem?
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Talvez essa foto ilustre bem o texto.