Sou medrosa. E curiosa. Essa conta não fecha. Ou melhor, fecha. Fecha a garganta. Se por tanto tempo odiei minha faceta medrosa, hoje agradeço a ela. Sinto que devo minha vida a ela, inclusive. Na contramão das frases inspiradoras (algumas delas escritas por mim), desejo que cultive seu medo e faça dele seu doce companheiro.
Voltando um pouco no tempo. Eu sempre fui fascinada por mulheres intensas. Daquelas que se entregam em cada relação (amorosa, profissional, sexual). Sempre olhei para elas como quem vê um espelho impossível. A intensidade das vozes e das posturas desafiando o mundo. As palavras certeiras e contundentes. Os olhares em flecha e os peitos abertos. Enfrentamento declarado. Cem anos em um dia. Mil vidas em uma fotografia. Multidões em uma canção. Mulheres que trazem com elas tantas outras e abrem com facão as trilhas ainda inóspitas, mas menos por que já foram pisadas. As desbravadoras da ousadia. Estandartes da liberdade. Sou apaixonada. E, não sei se sabem, paixão é uma doença. Patologia. Pathos.
Na doença desse apaixonamento, por muitas vezes confundi as conquistas dessas mulheres com suas mazelas e quis fincar em mim, confundindo com intensidade, o sofrimento e a solidão. As desbravadoras sofrem um bocado. E era nessa identificação que eu mais me demorava. Misturada a elas, minhas heroínas, eu, que não sei cantar. Eu, que não sou despudorada. Eu, que não sou boa com certezas. Eu, que perco o sono com desavenças banais. Eu, que não subo em palanques. Eu. Que pude me encontrar no sofrimento, pois isso sei fazer bem. Carregar a vida como uma espada atravessando o peito, foi o jeito que encontrei de ser intensa. O que me salvou foi o medo.
Agradeço ao medo, pois minha maior fobia é a de viver triste a vida tão curta. E a minha segunda maior fobia é encurtar ainda mais a vida já tão curta.
Esses dois medos, parceiros de jornada, descontrolados, já me causaram danos irreparáveis. Já me fizeram engolir todos os dias quatro comprimidos de sertralina, dose mais alta da medicação. Para não ser triste, tentei controlar a felicidade e foi o período mais triste da minha vida. Para não morrer, tentei controlar a vida, e foi morrer um pouco deixar de realizar desejos tão legítimos. Mesmo assim, agradeço ao medo. Hoje sei agradecer, pois estou com esses pavores adocicados e serenos, guiando não a pressa, mas a calma.
O sofrimento que emprestei das minhas heroínas intensas foi diluído pelo medo. A solidão também. Descobri, por ser medrosa demais para arriscar-me, que preciso de anos para a contundência. Descobri, por ser medrosa demais para o enfrentamento, que a velocidade tem efeito desvatador em mim e que a juventude do meu corpo tinha sido um mapa enganoso, uma fotografia distorcida de liberdade.
Minha intensidade é grisalha. Quero envelhecer.
Foi o medo que me fez criar laços, querer caminhar junto com alguém. Agradeço ao medo. Esse doce, que salva a humanidade todos os dias de atropelamentos e saltos fatais. Aliás, descobri que minha intuição é bem vizinha desse medo. O temor delicado como um sinal de alerta: não vá por aí.
Às minhas heroínas intensas, minha devoção permanece intacta. Que os corpos são todos diversos, sabemos bem e, portanto, é de se esperar que abriguem as mais diversas almas.
Acho que tenho alma de tempo mais lento, de ponto de ebulição em fogo baixo. É daí que preciso encontrar a intensidade. No final, é tudo breve. Um dia ou cem anos. É tudo breve. Posso diluir com calma a vida e a eloquência. As certezas são comprimidos de ilusão. Estou diminuindo a dose.
InDica
Para seguir:
Marcos Guinoza - inspirador, provocativo, artista visual
Para ler:
Escute as feras - Natassja Martin - Editora 34
Intenso; sensorial; reflexivo
Divulgando meu trabalho
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*** Citada e recomendada na coluna da maravilhosa Tatiana Vasconcellos no Universa Uol. Para ler, clique aqui. Obs: a frase que ela cita é a que ilustra a news de hoje.