Antes de começar a escrever o texto (onde começa o texto?) preciso compartilhar com vocês um sentimento de atraso que me parece tão descabido, mas tão honesto ao mesmo tempo…Jô Soares, artista da maior grandeza, nos deixou em 5 de agosto de 2022. Escrevo no dia 10 de agosto esse texto e ele me parece atrasado. Falo de ser um sentimento honesto, pois nasce de uma pressa que me habita de forma muito constante. Minha companheira diária, a pressa. Mas descabido por não fazer sentido algum não dar a nós, Jô e eu, mais tempo para existir nas palavras. Administro uma conta de instagram com muitos seguidores e pensei que deveria ter colocado algo lá sobre o Jô. Pensei que precisava escrever um texto bom, comovente e emotivo. Um texto bom. E precisava escrever no mesmo dia ou, de preferência, na mesma hora em que soube do falecimento de um dos artistas mais importantes da minha vida. Uma injustiça pensar que Jô seria assunto de um dia, uma semana, uma mês. Ele merece mais tempo e mais palavras. E eu preciso de mais tempo e mais palavras para entender porque senti que perdia um avô quando soube de sua morte. Dito isso, vamos ao parentesco que, não, não é sanguíneo, é simbólico.
Você que me lê talvez não saiba ou talvez saiba muito bem o que é crescer numa cidade sem muita vida cultural quando se tem a arte como dispositivo de elaboração do mundo. Eu sempre fui artista, mas mesmo antes de saber disso, sentia a arte como um organismo que operava em mim organizando a existência. Isso é forte e pode causar muita solidão. Você que me lê talvez não saiba o que é viver um mundo sem internet. Parece impossível, mas era assim. Sem internet. Recebíamos as notícias pelos jornais impressos, consultávamos lista telefônica e a memória que tinha que ter espaço era a da nossa mente e não a do celular. Era preciso guardar decor o número do telefone da casa da melhor amiga para caso de emergências e torcer para não ser o pai dela a atender o telefone, porque dava muita vergonha. Recebíamos nossos “conteúdos” pela TV aberta e esperávamos ansiosamente tal filme chegar na Tela Quente para finalmente podermos assistir.
Foi nesse território, da espera e da escolha limitada, que conheci Jô. Não o conheci humorista, mas apresentador. Sempre tive dificuldade para dormir e não era nada difícil esperar às onze e meia o sexteto começar a tocar a música. Quem seriam os convidados? Sobre o que falariam? Quais seriam as novidades trazidas do mundo de lá? Do mundo dos artistas? Mensageiros do mundo de lá, os artistas! Foi com Jô Soares que ouvi artistas da novela divulgando peças em cartaz (peças em cartaz! lugares onde transitavam, de carne, osso e ofício! lugares com endereço e horário!), falando nomes de autores que tinham lido, citando frases de obras e articulando o pensamento a partir de palavras que eu não usava nunca. Jô os acompanhava, ciente e sabedor das referências todas, devolvia a bola, mantinha o jogo, levantava novo assunto, recomendava nova leitura e também fazia rir.
Era como sentar à mesa da família. Da família que não era a minha, mas que era um pouco, pois estava ensaiando ali, o que queria ser lá. E o que sou (não tanto ainda, mas sou) hoje. Os papos do Jô eram ilhas que eu enxergava ao longe e tratava de nadar para buscá-las. Era a encarnação do projeto, o corpo do sonho.
Quem compartilhava esse amor pelo Jô comigo era minha avó. Juntas, assistíamos ao programa. Cada uma com seus olhos e toda essa genética artística inventada por mim, nem passava pela cabeça dela. Minha avó gostava e pronto! Por isso também, Jô era meu avô. Par de minha avó em noites e noites. Cúmplice, companheiro e fazedor do riso. Quando Jô morreu, senti falta de lamentar sua morte com minha avó. Ela está viva, mas não se lembra mais de muita coisa. Não usa mais o telefone. Está sem saber quem é Jô. E sem saber quem sou eu. Quando Jô morreu, senti falta de chorar com minha avó. E percebi que as faltas e as mortes levam também as tristezas que poderiam ser compartilhadas. Nunca tinha sentido falta de ficar triste com minha avó. Sentir essa falta foi novo e importante. Perceber que alguns ciclos terão que ser fechados na solidão de um quarto, sem beijo do gordo, sem beijo da vó.
Relógio da casa de minha avó. Marca o tempo desde sempre. O tempo passa mesmo quando parece parado.
InDica
Para ler:
Sobre os ossos dos mortos - Olga Tocarczuk - Editora Todavia
3 palavras sobre: sombrio - envolvente - cinematográfico
Para ver:
Ruptura - Série/2022 - Apple TV
3 palavras sobre: perturbador - distópico - viciante
"Da família que não era a minha, mas que era um pouco..." Obrigada por este texto lindo que nos leva pra lugares de antes <3