Ai, que preguiça.
Parece que já inventaram um começo assim, não é? Desconfio que Mário de Andrade tenha emprestado seu sentimento à personagem, abriu a boca ficcional e desabafou, Macunaimamente.
Estou assim. E todo texto meu há de começar com um bocejo. E toda palavra minha virá de um esforço braçal para teclar qualquer coisa que…
ai, que preguiça.
Mas a preguiça a qual me refiro não é uma esteira na areia, um colchão na sala, uma poltrona. Oh, não, meus amores. A preguiça é uma exaustão de ter que inventar um mundo possível em meio à brutalidade.
ai, que desânimo.
tiro nas costas, jogado da ponte, enchentes, bilionários num foguete que nunca parte, cargos ocupados por homens imbecis que estão preocupados com suas arminhas.
ai, que inferno.
e a gente em busca das borboletas amarelas, da pele-pétala, do renascimento da esperança miúda e insistente.
Eu sempre falo: é preciso parar de atribuir responsabilidade individual a problemas coletivos. Não é responsabilidade minha o cansaço. Fazer poesia em meio às notícias é uma expedição árida e exaustiva. Morre-se durante o trajeto. Se não a poeta, certamente o poema, essa gotinha frágil e tola.
ai, que tristeza
E a arte salva. A arte salva. A arte salva.
Sim, mas quem salva os artistas? Quem alimenta os animais?
Don´t touch, it´s art.
Ai, que loucura.
Touch me, please. Pois estou carente e encontrando pedra e quem me dera se fosse só pedra mesmo, Adélia, pois às vezes olho pedra e vejo arma. olho o objeto e vejo a morte. como se toda ferramenta humana tivesse sido feita para matar.
Ai, que desassossego
Que ferramenta é essa, a palavra? A gente faz o que mesmo com ela? Joga? Planta? Rega? Guarda? Rasga? Come?
Já tentou plantar girassol no concreto?
Mas e a flor que nasce no meio do asfalto, Carlos? Feia, mas flor. Ah, a flor. Ah, a náusea.
Ai, que verdade.
Assopra agora uma palavra bonita no meu ouvido e eu prometo molhar delicadamente com o que tenho de doce na boca, devolver macia e redonda a palavra pedra.
Toca-me com seus olhos inofensivos e indignados. Recupera meu sono com sua inocência de rimar amor e flor, já que é assim, de repente, que se nasce no asfalto a plantinha e o espanto.
Alimente os artistas. Toque os animais. Rasgue as plaquinhas.
Ai, que bom.
Que uma palavra puxa a outra. Que eu puxo você de volta. Que a gente se organiza na esperança. Que a gente se revolta na alegria. Que a gente se permite chorar de mãos dadas.
o ano meio que acabou, mas parece que 2025 vem aí com novos ares e, viva!, temos um lugarzinho gostoso pra cuidar da poesia. Vem pro Grupo de Escrita Matinal que as inscrições estão abertas.