→ esse texto foi escrito para a Revista Ciranda de Gaia como colunista convidada. Conheça a revista clicando aqui
Pausa
A primeira palavra desse texto foi digitada e a luz acabou.
Lá fora chove uma nuvem muito pesada, liberta, enfim, de carregar a água. Eu aproveito o resto de luz do dia e o resto da bateria do computador. O dia acabará. A nuvem acabou. A bateria conta um tic tac aflitivo. Quando eu acabo?
Interessante pensar que preciso que o mundo pare para que eu pause, respire, deixe para lá. Nascida, criada, crescida e mantida no tempo da alta performance, sinto que é preciso que me faltem todos os recursos externos para que eu desligue um pouco. Se nada funciona, eu posso não funcionar. Mas só se esgotarem todas as possibilidades. É assim: elejo o carrasco e sigo a vida obedecendo aos seus comandos. Não descanso e coloco na fila das frustrações mais uma: culpada por não conseguir descansar. Não tem fim. Se sempre é possível fazer mais, ou melhor, se sempre parece ser possível fazer mais, quando eu vou fazer menos? Quando acabar o que de mim? A saúde? A libido? Ou a vida?
A primeira vez que me percebi deprimida foi durante uma conjuntivite horrorosa que me isolou no quarto e me impediu de qualquer mínima luminosidade. Meus olhos foram desligados. Greve. Cancelaram o expediente. Além da vermelhidão doída daqueles dias, chorei, lavando mais ainda o tempo (como o temporal de agora). Não chorei pela conjuntivite, mas pela pausa. E não pela pausa, mas pelo que ela me trouxe. Com o cenário vazio, sem malabarismos e bobos da corte, minha mente desenhou com nitidez a infelicidade. Não estava nada bem e precisei esvaziar a agenda para sentir um vazio ainda maior. Foi ali, com os olhos inchados, que comecei um processo de retomada de mim que ainda está em andamento e dura já quase uma década. Precisei que algo acabasse. Foram meus olhos. Meu sentido mais requisitado, meu sentido mais sobrecarregado e confuso.
Clico alucinadamente teclas e touch. Toco a tela e toco pouco o corpo. Touch screen ganha do touch skin. A pele sem a presença que dedico às nuvens. A pausa é, mesmo que paradoxalmente, a manifestação inconteste da presença. A pausa é a fronteira, o ritmo, o recorte de tempo. A vida toda acontece antes da pausa final. A ausência de silêncio é a monotonia do ruído incessante. Mesmo assim, teclo teclo teclo. Embora meus olhos tenham me dado o recado e eu esteja num caminho mais gentil agora, não é meu corpo todo que quer parar. Gosto de fugir das retas e das certezas. A reta levaria esse texto agora a um final feliz e catártico. A descoberta inconteste e revolucionária. Pois bem, não funciona assim. Mesmo numa obstinada busca pela paz, meu corpo também traz à tona mecanismos elaborados de sofrimentos. Descobri na pausa o vazio. Doeu. Muitas de mim (sou tantas) ainda fogem dessa dor e preenchem minutos e horas e dias e meses. Preenchem de atualizações no site para ver se chegou a nova mensagem que mudará minha vida ou de mordidas no cantinho dos dedos, ocupando a boca num prazer desagradável. Ocupo minhas pausas inventando pequenos dilemas existenciais para fugir do maior de todos, aquele que eu ainda não sei o nome. Aliás, o nome é pausa. Aliás, a palavra é pausa. Toda consoante é um silêncio. Todo nome é um silêncio de todos os outros nomes. Escrever é uma pausa e um movimento. Talvez seja a única que me parece possível verdadeiramente. Pauso meu cansaço na palavra: na minha ou na do outro. Leio para pausar minha vida. Passar, na tela da mente, outro filme, com outro protagonista.
A luz está acabando. Pouca luminosidade na janela. Sou míope e começo a embaralhar as letras. Antes de parar, sinto que cheguei a um ponto mais otimista para compartilhar.
A pausa é um movimento feito em direção a você. A pausa é a presença de vida e não a imobilidade. A pausa é o movimento escolhido e não o imposto. Talvez a gente precise dançar o tempo e não estancar. A pausa é a chuva e não a imobilidade da nuvem. Escolhe seu movimento e nada nele.
A luz acabou. O texto também.
pausa