Era abril de 2016. Não me esqueço, pois terminei o dia aos prantos, ciente, mais por intuição do que por estudo, que estávamos diante do começo de um período violento.
O então deputado que hoje ocupa o cargo mais alto do Brasil, dedicava seu voto, a favor do impeachment da presidente Dilma, a um dos torturadores mais brutais do regime militar que havia, inclusive, a torturado.
Ele não saiu algemado. Desacreditei em qualquer revisão histórica séria a partir desse momento. Não foi crime apologia à tortura e ao regime ditatorial.
Começou uma violência simbólica da qual ainda não me recuperei. Vi, atônita, muitos amigos e familiares, indiferentes a essa perversidade, esse sadismo escancarado. Pessoas que eu amava (no passado, pois não consegui sustentar esse amor, confesso) celebravam o impeachment (e eu posso até compreender essa parte) sem tocar nesse assunto, sem a ressalva, sem o repúdio (essa parte eu não entendo).
Soube, naquele dia, diante da barbárie escancarada, que esse seria o próximo presidente do Brasil. Revelou-se, diante de mim, nua e crua, a realidade: diante do cenário desolador, o povo escolheria o autoritarismo.
Dito e feito. Em 2018, julho, procurei minha psiquiatra e disse que queria voltar com a medicação para ansiedade (estava sem desde 2015), pois sabia que viria pela frente alguns anos de horror. Voltei com a medicação e fui me preparando. Quando o resultado saiu em Outubro, pegando de surpresa muitos ao meu redor, eu ofereci abraços, conversas e esperança. Não estava quebrada. Aliás, estava, mas já havia colado os pedaços.
Exagero? Talvez você que me lê pense isso. Mas vou te explicar de um ponto de vista bem íntimo o que é você lidar com um governo que só existe se houver violência.
Sim, o bolsonarismo jamais vai acabar com a violência entre o povo, pois é da violência que ele se nutre. As propostas são de combate. O inimigo precisa ser sempre renovado, reinventado, fortalecido. Pensa aqui comigo. Lula é candidato desde 89. Antes do bolsonarimo, você já tinha brigado por política? Digo, já tinha desfeito laços? Já tinha vivenciado o Natal em frangalhos? Encontros de turmas de escola desfeitos? Aposto que não. Não foi Lula que inaugurou a violência e hostilidade entre nós. Foi o bolsonarismo, pois, repito, é disso que ele se alimenta. Se não houver pessoas dispostas a atacar as instituições ao ponto de desacreditá-las, não há chance para o autoritarismo. Sem ataque à ciência, não há como fundamentar os delírios que vinculam pessoas às fake news que, não se esqueça jamais da pandemia, podem ser fatais, acometer vítimas reais.
Vamos à mais uma costura: se o ataque às instituições é fundamental para o governo bolsonarista (nada de novo, tá? os autoritários seguem sempre a mesma receita), é preciso atacar as pessoas que formam essas instituições. Essa guerra é corpo a corpo, mesmo que sua tia ou primo não perceba isso e jure amar você, pesquisadora, por exemplo. Mesmo que seu padrinho insista em votar no bolsonaro e atacar a impresa e jure que tem orgulho de você, a querida jornalista. Impossível. Sim, muitos podem não perceber, mas estão atacando pessoas. Para atacar a ciência, ataca-se cientistas. Para atacar a arte, ataca-se os artistas. Que são pessoas. Que têm famílias.
Eu sou artista.
Você já imaginou ter pessoas que você ama atacando sua profissão, seu ofício para sustentar um projeto violento de poder? Já imaginou ter um presidente e seu grupo não só cortando tudo o que puder de verba para cultura, mas hostilizando e descreditando referências, pilares culturais de uma nação?
Eu sou professora de artes.
Já imaginou entrar numa sala de aula com jovens em formação, entusiasmados, cheios de sonhos e depois ter que ler um post de uma amiga falando abobrinha da lei rouanet? Já imaginou ter estudado a vida toda um assunto, ter doutorado na área e ter a sua formação invalidada por qualquer montagem mal feita que viraliza no zap e desperta o ódio contra o que você esolheu como modo de vida? E seu grupo familiar repostando sem ao menos ter qualquer cuidado em perguntar o que você acha daquilo? Não estou falando de debate de ideias. Estou falando de ataque.
É violento. Insuportável. E é o modelo de relação que continuará acontecendo enquanto bolsonaro ocupar esse cargo ou enquanto o bolsonarismo tiver esse exército (ou seita) disposto a qualquer coisa para que ele e sua família continue (no sigilo) usando dinheiro público como bem entender.
Eu sou a chata do rolê.
Não quero mais ir no Natal. Não me chame pra reencontro de turma. Não me coloque em grupo de whatsapp da família.
Não. Eu não sou a chata do rolê. Apenas tenho respeito por mim e pelas minhas escolhas. Respeito por valores que me são inegociáveis. Saio de campo, pois o campo é de guerra. Eu não sou de guerra, mas, mesmo assim, sou ferida a cada ataque. O inimigo delirante, os artistas da mamata, os vagabundos, sou eu aos olhos deles, mesmo que não confessem. Não é justo que eu me retire? Não é honesto que eu me retire?
Não reclame do fim da união familiar por causa de política com quem está se defendendo e tentando manter o mínimo de sáude e alegria. Reclame com quem fundou esse modo perverso e estratégico de disseminação de ódio (tem até gabinete).
Vai demorar um tempo pra sarar…um bom tempo…
Mas é hora de, ao menos, começar a fechar o corte.
Vai demorar pra sarar. E as cicatrizes serão inevitáveis e indeléveis